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A descaracterização de Brasília pelas reformas nos residenciais

 Por Juliana Contaifer

Brasília já é uma senhora. Beirando os 60 anos, nem tudo continua como foi construído, como foi pensado. E a vida no Plano Piloto não é a mesma: são cada vez menos crianças correndo debaixo dos prédios, pouca gente conhece os vizinhos e é um tanto perigoso chegar tarde em casa. Se por um lado o barro e a poeira deram espaço a belas árvores cheias de frutas e muito verde, por outro, a cidade vai envelhecendo.

Uma das dores de cabeça mais recorrentes de quem se preocupa com a conservação do patrimônio histórico da capital são as reformas nos prédios residenciais da cidade. Sem muita consideração pelo projeto inicial e talvez por falta de conscientização, vão se instalando fachadas de vidro fumê, pastilhas coloridas e detalhes que fogem das linhas limpas do modernismo. Retira-se os azulejos assinados por Athos Bulcão, se pinta o cimento aparente. E vai se perdendo o que torna Brasília uma cidade com tanta personalidade.

“Infelizmente vamos assistindo reformas em prédios mais antigos que, se não fosse a preservação do patrimônio histórico, se não fosse por obrigação, não sei onde iriam parar. São obras de gosto duvidoso, um brega-chique”, afirma o professor Benny Schvarsberg, professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em Arquitetura e Urbanismo da UnB. “Daqui a pouco você vai olhar um prédio e não vai saber de quando é, em que cidade está. É como uma pessoa que fez cirurgias plásticas demais.”


A preocupação é recorrente: “Eu passo por esses prédios e me dá uma pena. Você vê que são blocos incríveis, projetos muito bons, que só uma limpeza de fachada resolvia. Limpar, passar uma resina. Talvez seja um pouquinho mais caro no primeiro momento, mas dura mais e você mantém novo”, explica o arquiteto e presidente Instituto de Arquitetos do Brasil, Seção DF (IAB-DF) entre 2014 e 2016 Matheus Seco.

O tombamento da cidade pelo Iphan não é suficiente para segurar as transformações. O documento só regulamenta o projeto urbanístico e a volumetria dos prédios, ou seja, a altura, a exigência de pilotis, etc. Não fala sobre mudança de revestimento ou cores. Inclusive, é possível demolir um edifício e construir outro novo no lugar, desde que respeite as normas gerais. “O que não quer dizer que a gente não se preocupe em manter a arquitetura original. Mas é um trabalho que deve ser feito não só pelo Iphan, mas também pelo governo local. O trabalho de preservação cultural é da federação com a sociedade”, explica Carlos Madsen Reis, Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan – DF).


Em 2009, o então governador José Roberto Arruda tentou controlar um pouco as reformas, pelo menos nas quadras do chamado “quadrilátero histórico”. O decreto 30.303 tenta assegurar prédios que são testemunhas da proposta original, que carregam características de Brasília, mas não é um documento detalhado e ainda deixa uma margem de interpretação muito grande. E seguem as reformas.

Em nota, a Secretaria de Cultura explica que monitora o tombamento e aciona a Agefis para fiscalizar em casos de descumprimento, como dano e invasão de área pública, por exemplo. Mas não existe parâmetro formal para fiscalização acerca de mudanças de fachadas. “A concepção urbanística de Brasília configura-se pela setorização, caracterização e relação entre os espaços das escalas, e não pelos elementos de caráter puramente estético. A preservação de Brasília se dá, basicamente, por meio de normas urbanísticas para cada setor, da legislação de uso e ocupação do solo, além do Código de Edificações. Sendo assim, a transformação das fachadas de edifícios residenciais não representa, em si, risco de descaracterização de Brasília.”

É consenso que os prédios precisam, sim, de reformas. São antigos, pedem uma atualização e as necessidades dos moradores já mudaram muito nesses mais de 50 anos de vida. E nem todo bloco do Plano Piloto é relevante arquitetonicamente, mas é preciso conservar o que faz Brasília, Brasília. E além de ser importante preservar a memória da cidade que é tombada como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, preservar os edifícios é interessante quando se fala de dinheiro.


“Um prédio que é bem conservado, que mantém as características originais, vale muito mais dinheiro. O mercado nos diz isso. Não há ganho nenhum em uma reforma que é uma verdadeira mutilação, um capricho estético descompromissado”, explica Carlos, do Iphan. Nem toda reforma é ruim, algumas ainda se preocupam com o projeto original. O ideal é optar pela revitalização, ou pelo menos por revestimentos que se assemelham aos originais. Outra opção é escolher materiais semelhantes mas que tem um desempenho tecnológico melhor, como vidros com proteção térmica.

O arquiteto Samuel Lamas mora em um prédio da 308 sul e, apesar de ser a favor de melhorias e atualização, já conversou muitas vezes com o síndico e com os outros moradores sobre o projeto de reforma. Era minoria e acabou perdendo a briga: o bloco agora caminha para ganhar um bicicletário no meio dos pilotis. “Todo mundo que vem à Brasília vem visitar a quadra, é um patrimônio. Acho que as pessoas querem a sensação de modernidade”, afirma.

No fim das contas, a força para parar as transformações só pode vir de quem está intimamente ligado a elas: os arquitetos, os síndicos, os moradores. Ainda falta informação e conscientização sobre o valor que os blocos têm, conhecimento da história da cidade. Um prédio original, dos anos 1960 ou 1970, é atemporal por vários motivos: o projeto moderno, o uso consciente dos materiais e as linhas limpas e minimalistas.

Para garantir que a informação chegue a quem precisa, o Iphan, inclusive, tem um projeto constante de conscientização sobre o que torna Brasília única. Além de livros disponíveis no site (“Patrimônio em transformação”), existem planos de uma parceria com arquitetos para ministrar seminários aos síndicos sobre a preservação do patrimônio.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do DF também tenta fazer sua parte quanto à informação. Alberto de Faria, o presidente do CAU-DF, explica que a organização tem cartilhas e orientações aos arquitetos no site oficial do conselho. “Temos também uma ação junto ao sindicato dos condomínios para que sempre consultem arquitetos. Outra orientação é verificar a autoria do projeto inicial e tentar procurar o autor do desenho”, afirma.

“Informação é a arma mais potente que a gente tem. Tanto do valor cultural quanto o econômico, que andam de mãos dadas. Muita coisa já foi perdida. Mas tenho esperança que alguém no futuro queira retomar, tentar refazer o projeto original”, finaliza Matheus.


Fonte: Metrópolis
Cidades e Condomínios

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